Sem a menor sombra de dúvida, se fosse descrever a
jornada até aqui, precisaria publicar um livro. Dos transtornos hormonais na
adolescência, tratamentos insalubres, a perda de trompa e ovário, o fantasma da
esterilidade. A vontade imensa de poder transmitir a alguém especial tudo
aquilo de bom, elucidativo e encantador que aprendi com a dinâmica da
existência. Os eventos que fizeram a moça de São Paulo, conhecer o rapaz de Rio
Preto lá em Bauru e depois se mudarem juntos, os três (ela, ele e um novo ser em
desenvolvimento, fruto desse romance) para Araraquara. As pessoas certas no meu
caminho. Toda a transformação que só o dom de portar outra vida poderia proporcionar.
Novas dúvidas, novos interesses, novas leituras, muitas descobertas, emoções
únicas e sublimes. Empoderamento e beleza. Medo e prazer...
Vou tentar abreviar o relato pontuando apenas os
acontecimentos que se seguiram aos pródromos de parto:
Dia 16 de Junho (domingo) ocorreu o primeiro sinal do
início de uma longa semana: meu tampão começara a sair em forma de muco. Nessa
altura, eu já tinha diariamente inúmeras contrações de treinamento. Três dias
depois liberei logo pela manhã uma ‘bolachona’ viscosa com um pouco de sangue,
tive dúvida se estava perdendo também líquido amniótico. As contrações
começaram a incomodar no início da noite e duraram até amanhecer. Fui à última GO
(passei por quatro) que acompanhou meu pré-natal, minha bolsa continuava com a
membrana íntegra. Ela monitorou os batimentos do bebê durante as contrações e
viu que meu colo estava esvaindo-se, porém ainda sem dedo de dilatação, apenas
apagamento cervical. Eu estava bem, sem pressa, ele nasceria em seu próprio
tempo.
Segui tendo contrações com momentos de longas pausas que
foram se intensificando novamente (com intervalos variando de 8 a 11 minutos). O Ruy (meu companheiro), receoso, quis
conta-las pra não perder o time de
ligar pras parteiras, no entanto fiquei assim a noite inteira daquela
quinta-feira e nada evoluiu. Como não consegui dormir, passei a madrugada
arrumando pequenezas pela casa: tirando sujeirinha dos cantos, das paredes,
marcas de dedos dos armários... enfim, ‘ajeitando o ninho’. Estava calma,
paquerando o formato da minha barriga, fixando na memória a sensação de
senti-lo mexer em meu ventre.
Sexta-feira, as contrações continuaram, sempre
irregulares, mas com intensidades maiores e espaços reduzindo (variavam entre 4
e 7 minutos). Pedi pra minha amiga doula Cris vir me avaliar. Ela ficou horas
aqui com a gente, tranquilizou o Ruy, trouxe lanchinho, ensinou massagens pra
ele fazer em mim para aliviar as sensações dolorosas e nos orientou a curtir os
últimos momentos do período latente a sós que logo, logo as coisas mudariam. Sugeriu
deixar as parteiras de sobreaviso e foi embora.
Duas horas depois, experimentando posições de conforto, resiliente
em meio às contrações, senti algo molhando. Fui ao banheiro conferir e era
sangue vivo, deixou a água do vaso vermelha e também o papel higiênico. Em
pânico, chamei o Ruy, ligamos pra uma das parteiras para confirmar se aquilo
era normal. Segundo ela, pequenas quantidades podiam ser por consequência do
colo do útero dilatando, dai daria tempo de a Cris voltar e averiguar enquanto
elas se deslocavam até minha cidade. Só que na leiga dúvida sobre o que poderia
ser considerado ‘muito sangue’, o Ruy achou melhor não arriscar e irmos pro
Hospital. Tive medo.
Chegando lá, ainda do lado de fora da Maternidade, a Cris
(que foi ao nosso encontro) também achou, por toda sua experiência, que era
apenas sangue de algum vasinho que rompeu com o colo dilatando, disse que se entrássemos
para eu ser avaliada, dependendo de como estivesse a dilatação, a equipe médica
não me deixaria voltar pra casa. Como ela previu, entrei, fui avaliada, estava
com SEIS centímetros de dilatação e o sangue era mesmo do colo. Novamente
segura de si, pedi pra ir embora de volta pra casa, me acharam irresponsável e solicitaram
minha internação, então menti dizendo que preferia ter meu filho em outro
Hospital da cidade, e que meu companheiro me levaria por meios próprios. ‘Acreditaram’,
e após um ‘leve’ sermão sobre IR DIRETO pro outro hospital, pois estava em FRANCO
TRABALHO DE PARTO, fomos liberados.
Saí de lá com sorriso de orelha a orelha, cara de menina
sapeca, afinal, ‘dei o maior migué’ e estava voltando pra casa, e o melhor: com
belos 6 cm de dilatação!!! Até as contrações me pareceram mais prazerosas. As
parteiras já estavam na estrada, chegaram pouco mais de 1 hora depois, logo
após a fotógrafa.
Em casa, o Ruy foi enchendo a banheira de água
quentinha, acendemos velas aromáticas, colocamos músicas relaxantes, e fui
curtindo uma a uma as contrações com exercícios de respiração a espera do nosso
filhotinho. Nesse clima gostoso de banheira, chuveiro, colchão, bola, banqueta,
massagens com ólinhos, carinhos, chás, petiscos de frutas e doces, as horas foram
caminhando madrugada adentro. Minhas contrações continuavam irregulares, eu relaxava
e elas se espaçavam, então me incentivaram a partir para exercícios mais ativos
na esperança de estimulá-las...
As horas continuavam passando, o dia amanheceu, e eu que
há 3 noites não dormia, estava bastante cansada, com sono, e já pela manhã de
sábado, fui tirar um cochilo. Mesmo com algumas contrações, consegui dormir
mais de duas horas, até sonhei. Acordei com o almoço pronto.
Energias ‘renovadas’, minhas contrações engataram
novamente e entrei no que agora classifico como ‘falso período expulsivo’. Foi
muito emocionante (apesar de não ter sido efetivo), comecei a ter contrações
que me faziam criar força de expulsão, e a emoção de conhecer meu bebê
contagiou a todos... Só que não sentia ele descendo pelo meu canal vaginal, e
realmente não estava. No exame de toque, apesar de eu estar perdendo bastante
líquido, aparentemente apenas o córion havia rompido, estava com dilatação próximo
aos 8 ~ 9 cm, mas a membrana amniótica cobria todo o colo, intacta, formando um
bolsão de líquido entre este e a cabeça do bebê (que não havia se encaixado
completamente). Essa constatação foi de perder o ânimo.
Fui dar uma caminhada pelo condomínio, estava o maior
frio, voltei a fazer exercícios mais ativos, e já não conseguia encontrar
conforto durante a dor das contrações (que permaneciam irregulares). O tempo
continuava passando, quase dormi em pé entre uma e outra, meu corpo estava
novamente exausto. Mais uma tarde de sol se punha... pediram pra eu não entrar
mais na banheira, pois o relaxamento fazia as contrações ficarem com intervalos
maiores, devia escolher entre relaxar ou parir. Queria ver meu filho nascer,
conhecer seu rostinho, não estava sendo simples como imaginei. Talvez eu
precisasse me centrar mais, me desligar do que acontecia ao meu redor e me
entregar completamente.
Pela grande quantidade de líquido que havia perdido até
então, chegamos à conclusão que minha bolsa havia rompido em algum ponto alto
que não o colo, ganhando o aspecto de bexiga murcha, dificultando sua ruptura
onde a bolsinha d’água impedia a cabeça do bebê se acomodar na bacia e então
descer. As horas continuaram passando, e mesmo com os incentivos, exercícios,
contrações fortes, comidas apimentadas, chá estimulante, nenhuma evolução...
Durante todo esse processo foram feitos monitoramentos
cardíacos do feto. Sabia que enquanto eu e o bebê estivéssemos bem, poderíamos
continuar em casa tentando estímulos naturais, mas na medida em que o tempo foi
passando, fui ficando mais ansiosa, mais tensa, angustiada, até para urinar
estava com dificuldade. Já não conseguia distinguir se havia ou não algo me
bloqueando psicossomaticamente. Busquei, sem sucesso, motivos racionais que
pudessem explicar esse quadro estagnado.
O meu ponto limite na tentativa do parto natural domiciliar
foi a saída de líquido levemente esverdeado - o que indicava começo de eliminação
de mecônio pelo bebê. Apesar da quantidade em si não significar perigo, duvidei
que meu filho não começara sofrer com
aquele longo processo. Amniotomia em casa poderia ser arriscada. Então numa conversa franca e comovente com o
Ruy e depois com toda a equipe, decidimos apelar para o plano B, ou seja, remoção
para o Hospital (o mesmo de onde ironicamente havia fugido da internação há
pouco mais de 24 horas). Confesso que naquele momento, parte do meu choro era
de frustação e vergonha por não ter sido capaz de atender as expectativas que
criei em mim e nos demais. Bobagem minha. O apoio emocional do meu companheiro
foi fundamental, me dizia, entre outras coisas lindas, para eu me alegrar,
afinal, iriamos logo conhecer nosso filho tão querido e esperado. Nada
importava mais que seu nascimento.
Nosso plano B tinha sido previamente traçado segundo critérios
de distância (o mais perto), custo (o mais barato, já que toda a grana que
levantamos foi para pagar as parteiras pro plano A), disponibilidade de leitos,
‘humanização’ no atendimento (o menos cesarista da cidade), e equipamentos
emergenciais (UTI materna e neonatal) da maternidade. Foi nossa melhor opção
naquele momento. Feita a mala de coisinhas minhas e do bebê, nos dirigimos pra
lá.
Dei entrada na madrugada enluarada de domingo do dia 23,
cerca de uma hora e meia depois já estava com meu filho nos braços. Apesar do
meu receio com o atendimento hospitalar, a equipe de plantão foi bastante
compreensiva quanto ao tempo que passei em trabalho de parto em domicílio, no
geral não fizeram julgamento ético explícito sobre isso, ao contrário, disseram
que na medida do possível respeitariam a continuidade do processo
fisiológico e meu protagonismo. Qualquer indicação de intervenção era me
perguntada, aceitei logo de cara que terminassem de romper a bolsa, o que fez o
bebê finalmente encaixar e iniciar sua descida.
Não estava no conforto do meu lar, mas a sala de parto
era bem jeitosa, tinha bola, barra, cavalinho, música relaxante, meia luz... Permitiram
o acompanhamento da doula. Pude ficar com o Ruy e a Cris o tempo todo. Passei
um tempo no chuveiro, onde já consegui tocar a cabecinha do meu bebê, nem
acreditei! Assim que começaram a vir contrações mais fortes, passei pro cavalinho.
O Ruy me fazia massagem nas costas e quadril, a doula no rosto, pescoço, me
ajudava a controlar a respiração, distensionar os ombros, sempre com palavras
doces de incentivo...
Minhas contrações ainda não estavam tão efetivas no
puxo. A enfermeira vinha oferecer ocitocina por conta da distócia de progressão.
Combinamos a Cris e eu então de fazer com uma manta torcida ‘cabo de guerra’
assim que viesse a próxima contração. De primeira o bebê já veio coroando... Daí
a vontade de fazer força foi enorme, descontrolei, soltei altos ‘bramidos’. Meus
amados acompanhantes me apoiaram, um de cada lado, pra que eu ficasse
inclinada, meio de cócoras em cima da cama. Aconteceu muito rápido, em flashes. A equipe toda veio surgindo
(médico, enfermeira, auxiliares, pediatra), tive dificuldade em passar pra mesa
com o bebê pressionando pra sair. Alguns puxos e descobri o famoso ‘círculo de
fogo’ – sensação de vulva queimando - urrei alto, mas em momento algum pensei
ou desejei pedir medicação anestésica. Foi sugerido tentar concentrar apenas na
força. Ele estava nascendo.
Uau. Completamente proprioceptiva, senti em slow motion cada milímetro daquele
bebezão passando pela minha vagina, depois da cabeça, senti o giro, os
ombrinhos e todo o corpinho. Foi gostoso. Ele breve chorou, não precisou ser
aspirado. Eu já não sentia dor alguma, só pensava em conhecer aquele serzinho
que me habitara. Logo que foi cortado o cordão umbilical (provável que ainda
pulsava, não vi), o pediatra pediu pra examiná-lo junto ao pai (que também
chorava emocionado), me deitei reclinada e em seguida me devolveram-no sobre o
corpo.
Meu filhote chorava tanto e enquanto suturavam meu períneo
(precisei de uns pontos, poucos), fui o olhando, o cheirando, o acariciando... logo
se acalmou e enfim consegui sentir sua sugada quente em meu mamilo. Que emoção!
Ele não ficou um minuto se quer em berçário ou observação, 100% alojamento
conjunto. Minha placenta foi tracionada e saiu rápido, inteira, indolor, pedi
pra vê-la e permiti que a descartassem. Também me aplicaram injeção de
ocitocina na coxa pra evitar possíveis hemorragias. Devido ao líquido amniótico
meconial, preferi que o Ruy e uma enfermeira dessem logo o primeiro banho de
Teodoro. Enquanto isso, fui me despedir da Cris e ir pro quarto também tomar um
banho - sozinha, pensativa, sorridente, poderosa!
O Téo nasceu às 2 horas e 52 minutos daquele dia, ao som
de uma versão instrumental de ‘Stairway To Heaven de Led Zeppelin’, pesando
belos 3,590 quilogramas e 50,5 centímetros de comprimento, perfeito, com pouco
vérnix e enfeitado com uma circular de cordão no pescoço! <3 o:p="">3>
Agradecimentos especiais:
Ao meu grande amor Ruy, há quatro anos tornando minha
vida mais divertida, crítica, ativa e positiva. Obrigada por partilhar comigo
seu ‘showroom gênico’, obrigada por
ser meu contraponto, meu alicerce e agora, mais que companheiro, minha nova
família. Você me faz tão bem.
Ao Espaço Semente que me proporcionou germinar novas
possibilidades, acordar para outra realidade, mudar de escolhas, entender o
curso natural das coisas, despertar meu poder, me aproximar do divino, e
conhecer pessoas boas e cheias de luz.
À dupla de parteiras urbanas Enfªs. Camila Castro e
Adriana Mello, do Arte de Nascer, pelo serviço prestado com tanta doçura.
À Mariana Zago (Luz e Poesia Fotografia), fotógrafa e amiga que acompanhou e registrou
sensivelmente esse processo. Incrível como suas lentes possuem o dom de
eternizar momentos em lembranças que falam por si só, contemplando toda
complexidade que nem a melhor memória poderia descrever. Obrigada por dar forma
àquelas emoções.
À Cristiane Raquieli, que muito além de doula, foi um
anjo guardião, pau pra toda obra! Marcou lindamente inúmeros momentos dessa
jornada: da ‘lanterninha inspetora’ no banco de trás do carro ao ‘xixi entalado’,
a cada palavra de incentivo, conselho amigo, olhar empático, mãos anestésicas,
colo aconchegante, abraço acalentador. Altruísmo e amor do inicio ao fim. Não
sei o que teria sido sem você.
À querida Luiza Paim, instrutora de Yoga, que se fez
presente através de seus ensinamentos, conselhos e positividade. Lembrei de ti
a cada respiração.
À minha família que proveu tudo o que me foi necessário:
amor, zelo e respeito. Muito obrigada por me darem liberdade para bancar
diferentes escolhas. E estarem sempre ali, apostos para ajudar.
Aos meus verdadeiros amigos que torceram muito mesmo de
longe.
Ao Universo por conspirar, inspirar e permitir que
nossas vidas se cruzassem nessa sublime experiência.
3 comentários:
Lindo, lindo, lindo...
Quanta emoção... muito lindo! Sandra Caldeira
Lindo amiga! Parabéns! Super emocionada, chorando um monte aqui! Com certeza deve ter sido a experiência mais incrível e inigualável de todas! Parabéns pela força e determinação! E que venham mais alguns!!! Rss.. Toda felicidade do mundo para os três! S2
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