segunda-feira, 2 de abril de 2012

O parto: encontro com o sagrado

(trecho do texto de Adriana Tanese Nogueira "O PARTO E O SAGRADO")

Buscamos o contato com o sagrado para dar sentido às nossas vidas. O sagrado é a fonte de integridade, unidade e força vital. Sem ele a vida se desfaz, como se cortássemos os fios da costura e o patchwork da existência se soltasse e só sobrassem partes desconexas. Através do contato com o sagrado podemos definir o nosso mundo.

Por causa de sua enorme importância individual e social, o ingresso no sagrado é protegido e guardado por específicos rituais que entram em cena no tempo e no espaço apropriados. Apesar de o sagrado estar entre nós, ele não é acessível a todos. Ritos, sacerdotes, sacerdotisas e xamãs são os pontifex, as pontes que permitem o acesso ao sagrado, o qual se situa em outro espaço e tempo.

Periodicamente, são realizadas cerimônias para poder retornar à fonte, mergulhar nela e abastecer-se de nova Vida e de novo Ser. Como uma árvore cujas raízes estão no céu, o ser individual tira sua linfa vital do Ser maior, cósmico e universal. Quando a vida se encontra desgastada e embaçada quer dizer que está na hora de voltar para a casa originária e recuperar as forças vitais, restabelecer o contato com a nascente que doa sentido e renovar-se. Eis a experiência do sagrado.

Estas duas compreensões refletem visões de mundo diferentes. O divino é um poder superior, assustador e fascinante, diante o qual nos sentimos pequenas criaturas desamparadas. Ele nos cativa, mas também nos apavora e nos domina. Esta idéia tem o gosto antigo da compreensão antropológica que o cristianismo institucional promoveu durante séculos: o divino é um Pai rigoroso, poderoso até o limite da prepotência que esmaga o ser humano assustado e impotente.

Este horizonte se relaciona à concepção patriarcal do sagrado que fundou religiões, culturas e sociedades patriarcais. Espelha uma realidade social e individual historicamente construídas. Mas não diz toda a realidade.

Ao querermos superar este paradigma, podemos cair na mais fácil das tentações: polarizar as duas dimensões do sagrado, empunhando seu aspecto fascinante na tentativa de rejeitar aquele apavorante. Como se manifesta esta situação na humanização do parto?

A moderna tecno-obstetrícia, com todas suas inúmeras intervenções na qualidade de protocolos, normas, rotinas, máquinas, botões, luzes, gráficos, encarna com esmero a idéia do parto como mysterium tremendum, mistério tremendo. A crença que mantém em vida gestos, escolhas e atitudes é uma prova de que estamos lidando com um ritual que guarda as portas do sagrado. A obsequiosa fidelidade a práticas mesmo cientificamente ultrapassadas denuncia o temor frente ao "mistério tremendo" do parto.

Este sagrado tem seus sacerdotes que possuem o conhecimento adequado, são treinados e publicamente reconhecidos. Sua função de pontifex lhes permite conduzir os demais, primeiramente as parturientes, pelos meandros secretos do universo do parto. Eles são auxiliados por instrumentos e rituais, cuja finalidade é protegê-los dos efeitos devastadores do sagrado "selvagem": luvas, panos, máscaras, instrumentos metálicos, distanciamento emocional e impessoalidade.

Contudo, a tremenda majestas tem sua contraparte no lado fascinante do numinoso. O nascimento cativa, envolve e hipnotiza. Ao querer resgatar a beleza e força pode-se tentar tomar um atalho: mudar de lado, afirmando com ênfase o aspecto fascinans do parto, denunciando práticas e desfazendo-se dos antigos rituais. A polarização tem o intuito de resgatar a alegria do parto, mas se situa no mesmo paradigma obstétrico, patriarcal e cristão.

Reivindicar a simplicidade fisiológica do parto, em oposição à visão médica da obstetrícia tradicional, mantém o parto no mesmo horizonte. Querer mostrá-lo "ao alcance da mão" de toda mulher, é uma tentativa de secularização do parto que, ao retirar-lhe os rituais obsoletos da tecno-obstetrícia, despoja-o também de sua raiz de sentido transcendente, tornado-o um "simples fenômeno fisiológico" que não demanda necessariamente atenção especializada. Esta confusão remete à dinâmica cultural e psicológica de seus atores. Vivemos numa sociedade materialista, imediatista e patriarcal. Como humanizar o parto sem antes nos humanizar?

Os rituais em torno do parto, fruto de séculos de civilização, seguem necessidades psicológicas e sociais profundas. Pôr em cheque o uso desnecessário de tecnologia é um passo indispensável, mas não suficiente para mudar o paradigma. Despir o parto de todo e qualquer significado simbólico e espiritual, revela a cegueira de quem não enxerga sua dimensão iniciatória. É mais um sinal de que estamos nadando na mesma cultura materialista e míope que produziu a tecno-obstetrícia.

Nas atitudes das mulheres esta problemática se manifesta na oscilação entre o medo surdo do parto unido à crença cega na palavra do médico e sua simplória redução a um ato fisiológico que qualquer mulher em posse de informações (racionais) e disposta a rebelar-se contra o sistema opressor, dá conta de realizar, até sozinha. Desconsidera-se que os rituais do parto são uma resposta chamada ansiedade ôntica, existencial e humana, impondo às mulheres medidas que garantam sua segurança. Essas medidas lhes dão estrutura para enfrentarem otremendum que elas instintivamente reconhecem no parto.

A humanização do parto deve promover a transição para um novo paradigma do sagrado. Isso ocorre garantindo novos rituais que permitam o acesso ao poder benéfico do parto. A visão que humaniza reconhece a dimensão simbólica e espiritual do parto, bem como seus aspectos fisiológicos e materiais e sabe inserir-se na individualidade única de cada mulher. Desta forma é possível promover a transição para a experiência do sagrado no parto como fonte de força ordenadora, de poder vital, interior e propulsor, que se expressa em auto-estima, saúde mental e social, integridade, dignidade e responsabilidade.

O sagrado atua de dentro para fora. Sua eficácia se mede pelas repercussões positivas em qualidade de vida humana. Adentrar os portais corretos consente mergulhar no sagrado de modo a sermos renovados por seu poder benéfico, doador de vida e de sentido.

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