quarta-feira, 3 de março de 2010

O poder da obstinação / Por Elisabet Helsing

Artigo publicado na revista Breastfeeding Review, n.2, v.16, 2008, p.5-7 (Traduzido por Danielle Crawshaw para as Amigas do Peito). Escrito em homenagem a Bibi Vogel, fundadora das Amigas do Peito (falecida em 3/4/2004) e apresentado pela primeira vez na reunião Waba/LLL em Chigado, 2007.

Elisabet Helsing é uma fisióloga nutricional que já trabalhou para a Organização Mundial da Saúde no escritório regional para a Europa (1984–96). Foi ela quem deu início ao movimento “voltar a amamentar” na Noruega, quando redigiu um panfleto sobre amamentação em 1968. Neste mesmo ano, fundou a Ammehjelpen, uma associação de mães em prol da amamentação, que celebrou seus 40 anos de existência em 2008. Durante este período, escreveu extensamente sobre amamentação. Seu livro mais recente, Understanding Breastfeeding (Conhecendo a Amamentação), atualmente está sendo traduzido para o Inglês.

Introdução

Ao invés de palestrar sobre o “poder da amamentação” - tema do 50 º aniversário da La Leche League Internacional, estou indo para bancar a advogada do diabo. Vou argumentar que, como função básica, a amamentação é surpreendentemente fraca, e assim continuará a menos, e até que, nós, mulheres consciente e determinadamente a transformemos em uma força/potência de apoio e solidariedade entre nós mesmas. Além disso, vou argumentar que isso é mais do que um sonho distante … que pode ser realizado, tanto que já foi.
Então, por que eu descreveria a amamentação como fraca? Como todo ato natural, a amamentação é dependente de reflexos, tanto da mãe quanto do bebê. O bebê tem relativamente poucos problemas com seus reflexos de amamentação. Já a mãe tem mais problemas. Seus reflexos são sensíveis a estímulos psicológicos, tanto negativos como positivos. Tomemos como exemplo o reflexo mais central à amamentação, o reflexo de ejeção, sem o qual o bebê vai receber pouquíssima parte do leite presente na mama. A fragilidade da amamentação é parcialmente devida ao desentendimento e à desinformação acerca do reflexo de ejeção.

Na verdade, o bebê não suga o leite para fora do seio, mas sim depende da força deste reflexo para que ele tenha acesso ao leite. Mas o próprio reflexo de ejeção é dependente de estímulos psicológicos. Portanto, a amamentação pode ser mais fácil para aquelas mães que têm em sua personalidade com um certo traço obstinado em sua natureza, para aquelas que não são tão facilmente desencorajadas, para as obstinadas. Quando amamentei, há um século atrás, mal entendidos e desinformação estavam por toda parte, no meu país, a Noruega. Tinha-se dúvidas sobre tudo, desde freqüência de alimentação (Você realmente acha que ela está com fome tão cedo?) à qualidade do leite (Tem a certeza que o seu leite é bom o suficiente, já que ela está com fome de novo tão cedo?). Os seres humanos são a única espécie com a capacidade de fazer declarações verbais sobre problemas psicológicos em forma de mensagens.
O principal e mais destrutiva mensagem quando se trata de aleitamento veicula precisamente isto: dúvidas. Dúvidas sobre a nossa própria capacidade de amamentar. Recordo-me de um “Jelliffismo”, após o famoso casal Derrick e Patrice Jelliffe (1978) que declarou que “a amamentação é um conto do vigário ‘. Confiança é o antídoto para a dúvida.
A dúvida sobre a sua capacidade de amamentar pode se tornar uma profecia auto-sustentável. Esta dúvida, em combinação com o mau ou enganoso aconselhamento foi fundamental durante o experimento em larga escala ocorrido mundialmente em torno de 1900, quando a máquina de ordenha mecânica foi inventada em 1895, tornou possível a produção leiteira em grande escala. Em seguida, o leite destinado a um pequeno ruminante, o bezerro, de repente foi pensado ser preferível ao leite humano como base para a alimentação de crianças.
Nos EUA, as taxas de aleitamento materno despencaram mais rápido que em qualquer outro lugar: em 1911, 58% das mães ainda amamentando seus bebês aos 12 meses de idade (Woodbury 1925). Sim, quase dois terços das mães estadunidenses amamentavam seus bebês de um ano de idade em 1911. Cinqüenta e quatro anos mais tarde, em 1965, 27% das mães amamentavam seus bebês de uma semana de idade (Lawrence 1994). Sim, menos de um terço das mães estadunidenses ainda tentavam alimentar seus bebês ao peito, em 1965. Hoje, creio, a percentagem aumentou para aproximadamente 50%, ou seja, apenas metade das mães têm a coragem de colocar o bebê para mamar.
Uma aliança infeliz entre os produtores de substitutos do leite humano e produtos especiais para alimentação para bebés, bem como o setor da saúde em geral, tem de tomar parte da culpa. O setor de saúde, absolutamente certos de sua independência a partir da indústria e da sua capacidade inata para dar conselhos corretos, tornou-se parte de uma campanha de desinformação global. No meu país natal, Noruega, onde participamos desta loucura, as declarações feitas pela profissão médica normalmente informavam o seguinte:
A criança deve receber suas refeições em intervalos regulares e fixos e estes não devem ser muito curtos (Meyer 1899); Quanto mais estritamente se adere ao cronograma de alimentação adequada, mais calma e saudável a criança será (Brinchmann 1943).
E mais: Depois que o médico definisse os horários e determinado a quantia de leite necessária ao bebê, as suas instruções deveriam ser estritamente seguidas sem perrmitir alterações no cronograma (Dahl 1964).
Esta filosofia foi repetida em escala global, em um país após o outro, como uma batalha contra os bebês e seus reflexos inatos. Talvez não seja tão surpreendente que um estudo realizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) (1981), em nove países ao redor do mundo durante o final dos anos 1970’s, tenha consistentemente encontrado que quanto maior a freqüência de contato das mães com o sistema de saúde , menos elas amamentaram.
Esta constatação no entanto foi enterrada na página 149 do relatório publicado e nunca foi atendida. Tampouco foi dada a devida atenção quando um outro estudo da OMS, desta vez em nove países da América Latina uma década mais tarde, descobriu exatamente a mesma situação: quanto maior o percentual de partos guiados por agentes de saúde, menos as mães amamentavam (Pérez-Escamilla 1993).
O fascínio médico com a forma ‘moderna’ de alimentar bebês talvez seja compreensível. Era época de invenções; as ciências naturais levaram a descobertas que beiravam o milagre. O poder do vapor tinha sido dominado e utilizado, abrindo grandes extensões de terra para novos grupos de pessoas, e mais tarde, a electricidade foi inventada, o que levou a uma revolução, permitindo o uso de mais horas do dia. O telégrafo, o automóvel e o avião permitiram a comunicação em uma escala sem precedentes.
E na medicina, milagres também abundaram. Semmelweiss encontrou a solução para a temida febre puerperal, ou febre obstétrica, que causou a morte de tantas mulheres ao parto. Pasteur substituíu fantasiosas explicações sobre o contágio de doenças com informações científicas que poderiam ser trabalhadas. Vacinas e antibióticos tornaram-se parte do arsenal dos médicos. Então, quem pode culpar o setor da saúde por não traçar uma linha divisória, mas sim carregar seu entusiasmo em relação a todas as coisas médicas feitas pelo homem para a alimentação de crianças? Porque comida de bezerro não seria melhor para humanos, particularmente se tivesse sido modificada de acordo com as mais recentes descobertas científicas?
Um médico americano falou de toda a evolução em direção a alimentação artificial, englobando “não só uma grande conquista científica em si”. Também forneceu, como ele mesmo coloca, “o meio de mudar toda a tendência do pensamento profissional sobre o tema e de estabelecer esta ciência da alimentação infantil mediante uma base racional e exata” (Cumming 1858).
Pode ser tentador condenar a classe médica pelo seu comportamento. No entanto, devemos tentar ver a situação à luz dos tempos em que isso se passou.
Vamos avançar rapidamente à Escandinávia de hoje. Me perguntam muito sobre por que o aleitamento materno retornou ao grau que ela tem hoje nos países escandinavos (ver Figura 1). Provavelmente seria errado classificar a metade da população escandinava como particularmente teimosa e obstinada. Ao invés disso, talvez seja possível virar a minha tese de cabeça para baixo …
Grande parte da história de sucesso é contabilizado pela (relativa) ausência de obstinação por parte do sistema de cuidados de saúde, uma vez que as mães começaram a protestar os cem anos de experimentação, sobre seus bebês, insistindo para alimentá-los com seu próprio leite. Os políticos e os administradores da saúde nos países escandinavos tomaram a amamentação como um assunto sério. Os trabalhadores de saúde com experiência como mães também desempenharam um papel importante. Aos poucos, emergiu o entendimento de que o aleitamento materno não é apenas algo que as mulheres fazem automaticamente quando deixadas à sua própria sorte. Amamentar é um assunto político sério, e levá-lo a sério custa dinheiro. Uma licença maternidade que se estende por 12 meses após o nascimento do bebê, reembolsados pelo Estado, como forma de não dissuadir o emprego de mulheres, vai custar dinheiro ao estado - muito dinheiro. Do mesmo modo, a implementação do Hospital Amigo da Mãe e do Bebê, e a criação de uma sólida base científica para a formação de profissionais de saúde, não acontece sem intervenção estatal. Mulheres em posições políticas e administrativas são geralmente úteis, especialmente depois de terem amamentado no Parlamento. Eu não estou insinuando nem por um momento que tudo está bem nos estados da Escandinávia. Mas estamos no nosso caminho. E quando intervenções políticas em larga escala acontecem, muitas duplas de mãe e criança os acompanham felizes. Amamentar não é mais apenas para as obstinadas.

Contato: Dr Elisabet Helsing

© Australian Breastfeeding Association 2008

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